Leve
Leveza de ser. Certa vez fui numa cartomante num bairro comercial de Santos. Quando cheguei lá fui recebido com entusiasmo. Em sua opinião a mudança em mim havia sido transformadora — gosto muito mais desse visual de hoje do que aquele de um ano atrás. Acontece que era a minha segunda ou terceira vez por lá. Dessa, se bem me lembro, não andava amargurado, apenas inquieto com a mudança. Ela me olhou firme nos olhos, sorriu como nunca e disse — só vejo boas coisas! Suas cartas são ótimas — , reverberando desse modo as profecias de minha mãe que vivia a recontar as primeiras aventuras astrológicas de minha vida, quando eu era apenas um peixe flutuando em sua barriga.
Num resumo: a felicidade já estava agendada há tempos. Bastava abrir-me confiante a ela que as coisas e situações conspirariam ao meu favor. Quase que por instinto sorri como quem se vê no caminho certo pelo que o destino havia chegado mais cedo. Mas era uma impressão de um momento em que se uniam num laço excitante passado e futuro.
As roupas novas que me levaram a sobreloja daquela cartomante nasciam de um encantamento pelo que me via noutros trilhos, rumo ao que me fora dado como dádiva. À época havia pouco que começara a estudar em São Paulo, descortinando um mundo novo, inebriante. Dia e noite eu andava pelas ruas da capital em meio ao turbilhão de carros, pessoas, lugares e descobertas. Tudo me fascinava. E quase era certo que havia encontrado meu verdadeiro Eu.
Verdade que eu me via assim como alguém que se descobriu. Eu refrescava os meus olhos e juízos em todas as coisas e novidades que preenchiam o meu cenário. Se me perguntassem naquela época quem eu era, diria sem hesitar — sou daqui! Não se trata só de uma questão de amor e identificação, e sim de uma reviravolta quando se é muito jovem e não se sabe para onde a vida vai. E no meu caso havia desembocado lá na capital, no miolo do tráfego e agitação.
Mas a vida tem os seus reveses, e não tardou ao meu novo eu redescobrir certas inquietações primeiras, marginalizadas, e que agora vinham colher os seus tributos. A distância que me colocava no lugar do fascínio agora media os meus atos em vista do que ficara na baixada: os meus pais. É certo que eles viam na minha subida sinais de maturidade e crescimento. Mas também sentiam o peso da distância como uma sentença de que o tempo passa mais rápido para alguns. Era verdade.
Para mim o convite a novidade trazia futuros instigantes um atrás do outro. Para os meus pais eram ecos de distâncias insuperáveis, as quais forçadamente eles deveriam se acostumar.
Nunca se acostumaram.
Ressentiam-nas em todas as ocasiões em que eu descia à baixada. E assim, eu entrava noutro período de tempo: da consolidação dos esforços de ser um outro Eu, e dar forma a um patrimônio intangível no seio da memória da família. Foi um período de resistência e formação de fibra em minha identidade florescente. Muitas coisas aconteceram nesse momento que durou uns bons dez anos: desde minhas primeiras tímidas subidas de lotação às 4h50 da manhã para a faculdade, aos passos iniciais na carreira universitária.
Retrospectivamente, sei que as coisas boas que a cartomante vira eram fruto de uma resolução interior imperceptível, embora bem sucedida, de se ver e ser visto naquilo que nos chama para uma nova vida: o desejo de ser algo que nos cativa — um sentimento de presença de espírito! O lugar, o espanto, a admiração na distância determinaram o meu meio de viver.
E assim, eu fui lidando com o outro lado da moeda, carregando o peso dos que ficaram. Não foi fácil. Mais do que coragem e persistência, estar aberto, frágil e vulnerável aos afetos inversos que me tomavam, lançando âncoras no passado, constituíram-se na minha franca fortaleza com o que protegia-me e ao mesmo tempo vulnerabilizava-me. Os círculos de meus afetos e descobrimentos giravam na distância de meus pais ao mesmo tempo em que calavam no peito as dores indizíveis de ser alguém que busca seu verdadeiro-Eu, firme, mas não insensível aos que preferiam a permanência do mesmo.
Ressinto este “Eu” muitas vezes — e hoje ainda me pego sonhando com aquele garoto sonhando-se noutro lugar, vibrando, vivendo, desejando ser uma equidistância do amor seguro e acolhedor. O grau de afetividade que intercede por nós é a medida do olhar no outro. Se estamos longe é como estar muito perto de alguém. Se do contrário, estamos perto demais nos parece que a distância é ansiosamente uma potência que nos lança em sonho noutro universo que muito queremos estar. Dessa dialética irresoluta entendo pelo menos que a cartomante estava certa. A vida se dá num cruzamento das cartas, uma após a outra, onde nos envolvemos com toda sorte de acontecimentos, lugares e pessoas. E disso brota a nossa singular maneira de ser no encontro algo potente pela justa ‘diferença no estar’. As proximidades e distâncias são abstrações de quem parte em busca de si. Estar perto ou longe, é indiferente a nossa identidade que flui entre afetos. Só nos damos conta da nossa medida de ser em momentos de transição, quando hesitamos voltando as margens da percepção entre o hoje e o amanhã de ontem, quando projetamos a nossa vontade de realização — e já não saberíamos mais de quem estamos falando, de um Eu, de um ventre, de uma mãe, ou dessa mistura indefinível.
Seja como for, toda busca de si pressupõe o caminho, a partida e o retorno. Essas três dimensões como que desaparecem quando nos vemos verdadeiramente entre o Eu e Você. Boa viagem!